Acervo Vivo: colecionar sentidos, viver histórias.
Na infância, eu tinha um hábito: guardar meus cadernos, livros de escola, cartões, figurinhas, lembranças impressas. Criava pastas com etiquetas, encapava capas com cuidado, e sempre que podia, desenhava mapas imaginários nas folhas finais. Aqueles objetos não eram apenas papel: eram meu território afetivo, meu mundo construído em silêncio. Eu tocava, folheava, revisava. Era como se a minha própria história estivesse ali, impressa em papel.
Hoje, ao olhar para o cenário digital onde tudo é na nuvem, em PDF, em arquivos soltos e descartáveis sinto uma estranheza crescente. Pergunto-me: onde guardaremos nossas memórias? Que cheiro terá a infância das próximas gerações? Como criaremos conexões verdadeiras com coisas que não ocupam espaço no mundo real?
Foi dessa inquietação que nasceu em mim o desejo de preservar o que chamo de acervo vivo. Não uma coleção por vaidade, mas um corpo de objetos que me conectam com quem sou. Um espaço onde posse não é consumo é cuidado, memória, vínculo.

O retorno ao desejo de possuir.
Vivemos num mundo dominado pela velocidade e pela promessa do “acesso total”. Plataformas digitais oferecem milhões de títulos, filmes, músicas e revistas tudo em segundos. Mas quanto disso realmente permanece conosco? Quantos arquivos já esquecemos no fundo de uma pasta digital? A experiência se tornou efêmera, quase descartável.
E é justamente nesse cenário que ressurge um desejo profundo e aparentemente contraditório: o de possuir. Mas não de qualquer forma possuir com afeto, com intenção, com propósito. Ter não é mais acúmulo. É presença.
Como apontou o site The Summer Hunter, “na cultura dos serviços por assinatura, tudo é emprestado, e o consumidor não possui de fato aquele produto ou serviço” (fonte). E é aí que mora a diferença. O digital entrega conveniência. Mas não entrega profundidade.
Um livro é mais que leitura.
Hoje tenho mais de 100 livros físicos. E cada um deles tem uma história. Há livros com dedicatórias que me emocionam, edições raras com capas texturizadas, encadernações costuradas à mão, folhas que amarelavam mesmo antes de eu nascer. O cheiro deles, o peso nas mãos, o som ao virar a página tudo isso compõe uma experiência sensorial que o digital jamais alcançará.
Estudos mostram que o livro físico ativa áreas do cérebro ligadas à memória e à emoção de maneira mais profunda do que a leitura em tela (arteseartes.info). Além disso, o próprio ato de ter uma biblioteca visível, acessível, estimula a criatividade, a concentração e o senso de pertencimento.
Para mim, isso é mais que ciência: é cotidiano. Quando estou em dúvida, olho para minhas prateleiras e elas me respondem. Cada lombada é um capítulo da minha própria história.

O objeto como elo emocional.
Não guardo meus livros por estética ou status. Guardo porque eles carregam gestos, sensações, decisões. São os cadernos da minha infância transformados em obras maduras. E é isso que me preocupa: se não preservarmos objetos reais, como criaremos vínculos afetivos com nossa história?
Um estudo da PUC Goiás aponta que o colecionismo saudável contribui para a construção da identidade e o fortalecimento da autoestima (fonte). Guardar algo é um gesto simbólico. É dizer: isso importa. Isso me representa.
E isso vale para tudo que carregamos: livros, discos, fotos reveladas, cartas escritas à mão. São memórias táteis. E a memória precisa de tato para ser completa.

Design sensorial como resposta emocional.
O design sensorial surgiu na minha vida como extensão desse pensamento. Descobri que criar experiências não é apenas estética é estímulo, acolhimento, emoção. Um bom design tem cheiro, som, calor, ritmo. Ele convida, envolve, permanece.
O Cooper Hewitt Museum, um dos maiores museus de design do mundo, destaca em seu artigo “Why Sensory Design?” que o futuro do design será sensorial, pois a visão sozinha não basta para criar empatia e bem-estar (fonte). Eu concordo e vivo isso todos os dias.
Na Plimper, onde atuo como diretor criativo, tento aplicar essa filosofia: pensar com as mãos, com o ouvido, com o corpo. Criar marcas que sejam lembradas pelo toque, pelo papel usado, pela embalagem que embala mais que o produto: embala o afeto.
Colecionar como resistência à efemeridade.
O colecionismo consciente, como muitos têm chamado, é um ato de resistência cultural. Em tempos de excesso de informação e de arquivos descartáveis, escolher guardar algo é dar sentido ao que se vive. É cuidar da memória. É criar legado.
E o que é legado senão um acervo vivo? Um conjunto de fragmentos que falam de nós, mesmo quando não estivermos mais aqui?
Um livro com uma anotação na margem. Um cartão guardado no envelope original. Um vinil com marcas de uso. Tudo isso é tempo preservado
O futuro é híbrido e sensível.
Acredito que o futuro não será só digital. Ele será híbrido e sensível. A tecnologia vai facilitar. Mas o coração vai continuar pedindo presença. A nuvem não cheira, não pesa, não envelhece. Mas um livro sim.
Por isso, coleciono. Por isso, guardo. Por isso, convido você a fazer o mesmo.
Seja um livro, uma revista, uma foto ou um objeto querido comece seu acervo vivo. Não pela quantidade. Mas pela história que ele carrega. Pelo cheiro da infância. Pelo som da memória. Pelo calor daquilo que ainda podemos chamar de nosso.
Acervo Vivo — colecionar sentidos, viver histórias.
Referências confiáveis:
- The Summer Hunter — “Na cultura dos serviços por assinatura, tudo é emprestado”
🔗 https://thesummerhunter.com/cultura-dos-servicos-por-assinatura - Cooper Hewitt – Smithsonian Design Museum — “Why Sensory Design?”
🔗 https://www.cooperhewitt.org/2018/04/03/why-sensory-design - PUC Goiás – Impressões — “Objetos que comunicam: o reflexo da identidade no colecionismo”
🔗 https://impressoes.pucgoias.edu.br/objetos-que-comunicam-o-reflexo-da-identidade-no-colecionismo - Arte & Artes — “O encanto insuperável dos livros físicos”
🔗 https://www.arteseartes.info/o-encanto-insuperavel-dos-livros-fisicos-uma-experiencia-sensorial-e-emocional-inigualavel-na-era-digital
Autor: Romis Carmo.
Publicação: Brunna Gambarini.